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APÓS VOTO DE BARROSO, JULGAMENTO DA DESAPOSENTAÇÃO É ADIADO NOVAMENTE

 

 

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O voto do ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, sobre a desaposentação surpreendeu a todos os que acompanhavam a discussão. O ministro, relator da matéria, foi o único a votar até agora. Ele propôs uma solução para o problema, mesmo reconhecendo que pode estar pisando em terreno do Congresso. 

 

Logo depois do voto do ministro, o presidente do STF, ministro Ricardo Lewandowski, declarou intervalo da sessão. Quando os ministros voltaram, o presidente decidiu suspendê-la, já que três ministros estão ausentes nesta quinta-feira (9/10). O julgamento começou na quarta e também foi adiado em seu primeiro dia.

 

A desaposentação é a possibilidade de o trabalhador, depois de aposentado pela primeira vez, voltar a trabalhar para se aposentar depois, com uma aposentadoria maior, com base na nova idade. A discussão que está no Supremo é se esse movimento pode ser feito ou não.

 

O caso teve repercussão geral reconhecida. De acordo com dados do INSS, a decisão a ser tomada pelo Supremo vai afetar 123 mil processos já ajuizados, que envolvem mais de um milhão de pessoas. Isso resultaria, em 20 anos, num impacto de R$ 69 bilhões aos cofres federais, ainda segundo o INSS.

 

Os segurados afirmam que, assim como o Estado não pode obrigar ninguém a aposentar, não pode proibir alguém de se desaposentar. O INSS, autarquia federal responsável pela previdência social, afirma que desistir da aposentadoria viola ato jurídico perfeito e permiti-lo seria transformar a aposentadoria por tempo de serviço em algo facultativo, causando distorções ao sistema.

 

Sistema solidário

 

http://s.conjur.com.br/img/b/luis-inacio-lucena-adams-advogado.jpegAs teses da União foram defendidas em sustentações orais do advogado-geral da União, Luis Inácio Adams (foto), e pelo procurador-geral Federal, Marcelo Siqueira — o chefe das procuradorias autárquicas federais. Adams afirmou que, ao abrir mão da aposentadoria, o segurado abe mão do princípio da solidariedade entre os membros da sociedade. “Aquele que se aposentou mais cedo para acumular aposentadoria com salário não pode agora quebrar a lógica do sistema”, disse.

 

Depois do voto do ministro, advogados e representantes da União disseram não esperar que o ministro "trafegasse por uma quarta via" em seu voto. A expectativa era que subscrevesse a uma das três teses hoje em discussão na Justiça: permitir a desaposentação sem a devolução da aposentadoria recebida antes de voltar ao trabalho, como decidiu o Superior Tribunal de Justiça; permitir com a devolução dos valores; ou não permitir a desaposentação.

 

"Quarta via"

 

O que Barroso propôs foi uma quarta alternativa, que considerou “a mais justa”. Em seu longo voto, propôs que a desaposentação fosse permitida, sem a devolução dos valores recebidos, mas, no momento do cálculo do fator previdenciário, devem ser levados em conta a idade e o salário da data da primeira aposentadoria.

http://s.conjur.com.br/img/b/roberto-barroso1.jpegBarroso (foto) explicou que o sistema da Previdência se baseia em duas premissas: é um sistema contributivo e solidário. Isso porque todos são obrigados a contribuir ao sistema, mas a divisão do dinheiro no pagamento dos benefícios não é feita de acordo com o que cada um contribuiu. Não é um sistema capitalista, explicou o ministro.

 

Ao mesmo tempo, continuou, o Judiciário não poderia proibir uma conduta sem que a lei o faça. Portanto, a desaposentação, no entendimento do relator, deve ser permitida. E permitir que se volte a trabalhar obrigando a restituição das aposentadorias recebidas seria o mesmo que não permitir. “Não pode haver um sistema que obriga o trabalhador a contribuir sem benefícios.”

 

Nova conta

 

O que o ministro trouxe de novidade em seu voto foi a questão do cálculo da nova aposentadoria. O fator previdenciário envolve quatro fatores: tempo de contribuição, alíquota da contribuição, idade da aposentadoria e expectativa de vida do trabalhador quando do momento do pedido de aposentadoria.

 

A proposta do ministro é que, na segunda aposentadoria, o cálculo do fator previdenciário considere a idade e a expectativa de vida levadas em conta na data do primeiro pedido de aposentadoria. Isso evitaria que os valores entre uma data e outra aumentasse demais.

 

Segundo Barroso, que convocou especialistas em ciências atuariais para ajudá-lo a fazer o voto, com esse sistema, a segunda aposentadoria aumentará a em média 24,7% em relação à primeira.

 

No Congresso

 

Ele reconheceu que essa discussão deve ser feita pelo Congresso Nacional. Disse em seu voto que a Câmara dos Deputados chegou a discutir um projeto de lei sobre desaposentação (PL 2.687/2007), mas ele foi rejeitado pela Comissão de Finanças da Casa, depois de parecer do deputado federal Zeca Dirceu (PT-SP).

 

“Entendo que a ordem jurídica infraconstitucional não tratou desse tema. O Legislativo hoje pode vir a negar a desaposentação ou permitir. Só não pode manter a contribuição sem dar o benefício”, afirmou. Barroso explicou que fez uma “interpretação teleológica” da Constituição Federal e das leis que tratam do assunto, mas reconheceu que seu voto “é por certo inovador”.

 

O relator também propôs que a decisão só passe a valer 180 dias depois da publicação do acórdão. É o tempo que considerou justo para o INSS e a União se organizarem, operacional e financeiramente, e para “prestigiar na maior medida a liberdade da conformação do Legislativo”.

 

Terão os profissionais deste escritório a inteira disposição para aclaramento da matéria e/ou propositura da ação.

 

“A justiça seguirá à sua frente com a finalidade de preparar o caminho para seus passos” (Salmos 85:13)

 

 

 

VOTO NA INTEGRA DO NOBRE JULGADOR MINIUSTRO LUÍS ROBERTO BARROSO

 

 

Supremo Tribunal Federal Ministro Luís Roberto Barroso

 

RE 661.256

DESAPOSENTAÇÃO

 

VOTO

O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO (RELATOR):

 

Ementa: PREVIDÊNCIA SOCIAL. REGIME GERAL. POSSIBILIDADE DE DESAPOSENTAÇÃO. NORMAS APLICÁVEIS.

 

1. O Regime Geral da Previdência Social – RGPS, aplicável a todos os trabalhadores da iniciativa privada, é informado por mandamentos constitucionais que incluem o equilíbrio financeiro e atuarial, a isonomia entre os segurados e a justiça intergeracional. O sistema é estruturado em torno de dois vetores: a) o caráter contributivo e (b) o princípio da solidariedade.

 

2. A solidariedade decorre, entre outros fatores, do modelo de financiamento, que abrange não apenas as contribuições dos empregados, mas também dos empregadores, além de recursos orçamentários e outras fontes de custeio. O caráter contributivo resulta do pagamento de contribuições pelos empregados, em troca de coberturas a serem fornecidas pelo sistema, que incluem a percepção de proventos com base no tempo e no valor das contribuições.

 

3. Em razão do princípio da solidariedade, não se exige uma correspondência estrita entre contribuição e benefício, até porque o sistema ampara pessoas que nunca contribuíram ou contribuíram de maneira muito limitada. Por outro lado, tendo em vista o caráter contributivo do modelo, exige-se algum grau de comutatividade entre o que se recolhe e o que se recebe. Como consequência, não é legítima a cobrança feita ao segurado sem qualquer contraprestação efetiva ou potencial. 2

 

4. A figura da desaposentação consiste na renúncia a uma primeira aposentadoria para obtenção de uma nova, em melhores condições, com utilização de contribuições posteriores, pagas em razão da volta à atividade. A Lei nº 8.213/91 – e seu art. 18, § 2º –, não cuida da desaposentação, por ter sido editada ao tempo em que as contribuições posteriores à aposentadoria eram restituídas ao segurado sob a forma de pecúlio.

 

5. Não sendo vedada pela legislação, a desaposentação é possível. No entanto, à falta de legislação específica – e até que ela sobrevenha –, a matéria sujeita-se à incidência direta dos princípios e regras constitucionais que cuidam do sistema previdenciário. Disso resulta que os proventos recebidos na vigência do vínculo anterior precisam ser levados em conta no cálculo dos proventos no novo vínculo, sob pena de violação do princípio da isonomia e do equilíbrio financeiro e atuarial do sistema.

 

6. Até que seja editada lei que trate da matéria, será adotado o seguinte critério: no cálculo dos novos proventos, os fatores idade e expectativa de vida devem ser aferidos com referência ao momento de aquisição da primeira aposentadoria. Tal interpretação se impõe em razão da finalidade de tais fatores à luz do sistema constitucional: graduar o valor dos benefícios em função do tempo estimado de permanência do segurado no sistema. Do contrário, o servidor desaposentado receberia benefícios por prazo muito maior do que os outros segurados com a mesma idade e o mesmo tempo de contribuição.

 

7. Tal solução destina-se a colmatar uma lacuna existente no sistema jurídico em relação à desaposentação. Por essa razão, somente será aplicada 180 (cento e oitenta) dias após a publicação do presente acórdão. Nesse intervalo, se os Poderes Legislativo e Executivo entenderem que devem prover diferentemente acerca da matéria, observadas as diretrizes constitucionais aqui traçadas, o ato normativo que venham a editar deverá prevalecer.

 

8. Recursos extraordinários aos quais se dá provimento parcial, assentando-se a validade da desaposentação, observada a condição enunciada no item anterior. 3

 

I. A HIPÓTESE

 

1. Os presentes recursos extraordinários discutem a existência ou não do direito à chamada desaposentação, consistente na renúncia a uma aposentadoria concedida no Regime Geral da Previdência Social (RGPS) para fins de aquisição de um novo vínculo, em condições mais favoráveis, no mesmo sistema. De forma específica, a melhoria seria decorrente do fato de o segurado haver continuado em atividade laboral ou a ela haver retornado após a concessão do primeiro benefício, tendo efetuado novas contribuições previdenciárias obrigatórias, as quais pretende ver consideradas no cálculo do novo benefício.

 

2. O caso concreto subjacente envolve segurado ao qual foi concedida aposentadoria especial em 08.10.1992. Após o deferimento do benefício, o autor permaneceu em atividade remunerada e alega ter completado 35 (trinta e cinco) anos de contribuição. Com base nisso, pleiteou a cessação da aposentadoria especial e, ato contínuo, a concessão do benefício de aposentadoria por tempo de contribuição, com data de início (DIB) em 21.09.2006, valendo-se das contribuições posteriores ao primeiro vínculo previdenciário.

 

3. O primeiro acórdão recorrido, proveniente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, reconheceu o direito à desaposentação, condicionada à devolução integral dos proventos já recebidos pelo segurado com base na aposentadoria original. Veja-se a ementa do provimento judicial impugnado:

 

“EMENTA: PREVIDENCIÁRIO. DESAPOSENTAÇÃO PARA RECEBIMENTO DE NOVA APOSENTADORIA. POSSIBILIDADE. AUSÊNCIA DE NORMA IMPEDITIVA. NECESSIDADE DE DEVOLUÇÃO DO MONTANTE RECEBIDO NA VIGÊNCIA DO BENEFÍCIO ANTERIOR.

 

1. Tratando-se a aposentadoria de um direito patrimonial, de caráter disponível, é passível de renúncia.

 

2. Pretendendo o segurado renunciar à aposentadoria por tempo de serviço para postular novo jubilamento, com a contagem do tempo de serviço em que esteve exercendo atividade vinculada ao RGPS e concomitantemente à percepção dos proventos de aposentadoria, os valores recebidos da autarquia previdenciária a título de amparo deverão ser integralmente restituídos. Precedente da terceira Seção desta Corte.

 

3. O art. 181 – B do Dec. n° 3.048/99, acrescentado pelo Decreto n° 3.265/99, que previu a irrenunciabilidade e a irreversibilidade das aposentadorias por idade, tempo de contribuição/serviço e especial, como norma regulamentadora que é, acabou por extrapolar os limites a que está sujeita, porquanto somente a lei pode criar, modificar ou restringir direitos (inciso II do art. 5° da CRFB)”.

 

4. Esse acórdão foi objeto de recursos especial e extraordinário, interpostos tanto pelo particular quanto pelo INSS – Instituto Nacional da Seguridade Social. O Superior Tribunal de Justiça negou provimento ao recurso da autarquia e deu provimento parcial ao recurso do segurado, afastando o dever de restituir os proventos percebidos em razão da primeira aposentadoria. Esse segundo acórdão, objeto de um segundo recurso extraordinário manejado pelo INSS, tem a seguinte ementa:

 

“PROCESSUAL CIVIL E PREVIDENCIÁRIO. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. PEDIDO DE SOBRESTAMENTO. AUSÊNCIA DE AMPARO LEGAL. VIOLAÇÃO À CLÁUSULA DE RESERVA DE PLENÁRIO. INEXISTÊNCIA. APRECIAÇÃO DE DISPOSITIVOS CONSTITUCIONAIS EM SEDE DE RECURSO ESPECIAL. INADMISSIBILIDADE. RENÚNCIA A BENEFÍCIO DE APOSENTADORIA. POSSIBILIDADE. DIREITO PATRIMONIAL DISPONÍVEL. DEVOLUÇÃO DOS VALORES RECEBIDOS. NÃO-OBRIGATORIEDADE. AGRAVO DESPROVIDO.

 

1. Não subsiste o pleito de se determinar o sobrestamento do julgamento do presente recurso, sob a alegação de que o Supremo Tribunal Federal está apreciando a constitucionalidade do art. 18, § 2º, da Lei nº. 8.213/91, tanto por se tratar de pedido desprovido de amparo legal, quanto pelo fato de que a Suprema Corte não está decidindo a questão em tela em sede de controle abstrato de constitucionalidade.

 

2. Também não prevalece a alegação de ofensa à cláusula de reserva de plenário, uma vez que a decisão hostilizada, sequer implicitamente, declarou a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo.

 

3. A via especial, destinada à uniformização da interpretação do direito federal infraconstitucional, não se presta à análise de dispositivos da Constituição da República, ainda que para fins de prequestionamento, com o intuito de interposição de recurso extraordinário.

 

4. Permanece incólume o entendimento firmado no decisório agravado, no sentido de que, por se tratar de direito patrimonial disponível, o segurado pode renunciar à sua aposentadoria com o propósito de obter benefício mais vantajoso, no regime geral de previdência social ou em regime próprio de previdência, mediante a utilização de seu tempo de contribuição, sendo certo, ainda, que, tal renúncia não implica em devolução dos valores percebidos.

 

5. Agravo regimental desprovido”.

 

5. Em ambas as impugnações, o INSS alega três violações à Constituição: (i) garantia do ato jurídico perfeito (CF/88, art. 5º, XXXVI); (ii) violação ao princípio da solidariedade (CF/88, arts. 40, 194 e 195); e (iii) violação ao princípio da isonomia, aplicável entre os segurados (CF/88, art. 5º, caput e 201, § 1º). De forma mais específica, o INSS sustenta que a legislação em vigor, informada pelos elementos constitucionais acima referidos, conteria vedação expressa à desaposentação, a qual teria sido desconsiderada pelo acórdão recorrido. O dispositivo em questão é o art. 18, § 2º, da Lei nº 8.213/91, cuja dicção é a seguinte:

 

“§ 2º O aposentado pelo Regime Geral de Previdência Social–RGPS que permanecer em atividade sujeita a este Regime, ou a ele retornar, não fará jus a prestação alguma da Previdência Social em decorrência do exercício dessa atividade, exceto ao salário-família e à reabilitação profissional, quando empregado. (Redação dada pela Lei nº 9.528, de 1997)”.

 

 

6. Como se extrai da leitura, o artigo estabelece que o aposentado que passar a exercer atividade sujeita ao RGPS após a aposentadoria não fará jus a prestação alguma em decorrência disso, com exceção do salário-família e da reabilitação profissional, quando empregado. Sem prejuízo disso, a mesma Lei nº 8.213/91 prevê, em seu art. 11, § 3º, a cobrança da contribuição social incidente sobre os rendimentos do trabalho posterior à aposentadoria, nos mesmos termos aplicáveis para os trabalhadores em geral. Veja-se o dispositivo:

 

“§ 3º O aposentado pelo Regime Geral de Previdência Social–RGPS que estiver exercendo ou que voltar a exercer atividade abrangida por este Regime é segurado obrigatório em relação a essa atividade, ficando sujeito às contribuições de que trata a Lei n° 8.212, de 24 de julho de 1991, para fins de custeio da Seguridade Social”.

 

 

7. Existem, portanto, dois pontos a serem enfrentados: (i) a existência do direito à nova aposentadoria no RGPS, considerando as contribuições efetuadas antes e depois da cessação de aposentadoria anterior, bem como a alteração da idade; e (ii) caso se conclua pela existência de tal direito, saber se há necessidade de devolução dos valores recebidos com base no primeiro vínculo previdenciário, objeto de renúncia.

 

8. Antes de concluir a apresentação da matéria em exame, cumpre registrar que tramita na Corte o RE 381.367, atualmente sob a relatoria do Ministro Marco Aurélio, no qual se discute a mesma questão de fundo. Esse recurso foi distribuído ao Ministro Maurício Corrêa em 15.04.2003, muito antes de ser introduzida a sistemática da repercussão geral. O julgamento de mérito foi iniciado em 16.09.2010, tendo sido interrompido, por pedido de vista, após o voto do Ministro relator, que reconhecia o direito à desaposentação. Na ocasião, S. Exa. não se pronunciou quanto à necessidade ou não de restituição dos proventos já recebidos. Vale transcrever passagem conclusiva do voto proferido pelo Ministro Marco Aurélio:

 

“Em síntese, ao trabalhador que, aposentado, retorna à atividade cabe o ônus alusivo à contribuição, devendo-se a ele a contrapartida, os benefícios próprios, mais precisamente a consideração das novas contribuições para, voltando ao ócio com dignidade, calcular-se, ante o retorno e as novas contribuições e presentes os requisitos legais, o valor a que tem jus sob o ângulo da aposentadoria. Essa conclusão não resulta na necessidade de declarar-se inconstitucional o §2° do artigo 18 da Lei n° 8.213/91, mas em emprestar-lhe alcance consentâneo com a Carta Federal, ou seja, no sentido de afastar a duplicidade de benefício mas não o novo cálculo de parcela previdenciária que deva ser satisfeita. É como voto na espécie”.

 

9. Identificado o objeto da controvérsia, passo ao exame do mérito.

II. PRELIMINARMENTE: INEXISTÊNCIA DE OFENSA AO ART. 97 DA CONSTITUIÇÃO

 

10. Em sua manifestação, o Ministério Público Federal sustenta que os acórdãos recorridos seriam nulos por violação ao art. 97 da Constituição, que condiciona a declaração da inconstitucionalidade de lei ou ato normativo à decisão da maioria absoluta dos membros de tribunal ou do seu órgão especial. Segundo o Parquet, as Cortes de origem teriam negado aplicação ao art. 18, § 2º, da Lei nº 8.213/91, cuja textualidade seria incompatível com qualquer leitura que autorize a desaposentação. A hipótese atrairia, assim, a aplicação da Súmula Vinculante nº 10, com a qual se pretende evitar a prática de negar vigência a determinado dispositivo legal sem a declaração explícita da sua invalidade.

 

11. Embora o argumento seja plausível, penso que não deve acolhido. O Superior Tribunal de Justiça, encarregado de uniformizar a interpretação da legislação federal, analisou a Lei nº 8.213/91 e entendeu que a figura da desaposentação não foi objeto de disciplina específica, sendo possível à luz dos fundamentos em que se apoia o sistema previdenciário. De forma específica, considerou que o art. 18, § 2º, trata das relações previdenciárias em curso, e não cuidando da possibilidade ou não de renúncia e requerimento de novo vínculo. Não considero essa leitura artificial, sobretudo pela inexistência de dispositivo legal que impeça a abdicação da aposentadoria e/ou que associe a esse ato a consequência de impedir que as contribuições vertidas ao sistema tornem-se imprestáveis para aquisição de um novo benefício.

 

12. Em rigor, na linha do raciocínio que será desenvolvido ao longo do voto, entendo que a controvérsia se origina de uma deficiência na legislação que rege a matéria, que deixa de equacionar – de forma compatível com a ordem constitucional – a situação dos aposentados que retornam ao mercado de trabalho e efetuam novas contribuições obrigatórias para o RGPS. Essa insuficiência da Lei nº 8.213/91 não decorre de uma suposta invalidade do art. 18, § 2º, mas da falta de dispositivos específicos sobre o tema. Diante disso, os tribunais de origem extraíram a solução que entenderam correta do sistema em vigor, inclusive das diretrizes constitucionais pertinentes. Essa operação, como se sabe, independe da chamada reserva de plenário.

 

13. De toda forma, a fim de evitar que esse Supremo Tribunal Federal deixe de poder apreciar a matéria de fundo por dúvidas de ordem formal, requisitei a subida de outro recurso extraordinário que versa sobre a mesma questão, com a ressalva de que o órgão a quo considerou necessário pronunciar a inconstitucionalidade do art. 18, § 2º, da Lei nº 8.213/91, na linha do que alega o Ministério Público. E o fez observando a reserva de plenário. A controvérsia acerca da possibilidade de desaposentação tem suscitado profunda dúvida na sociedade, com milhares de processos parados à espera de uma resposta definitiva por parte do STF. Retardar o exame da matéria apenas aumentaria a insegurança jurídica e a compreensível ansiedade dos potenciais afetados.

III. OS FUNDAMENTOS CONSTITUCIONAIS DO REGIME GERAL DE PREVIDÊNCIA SOCIAL: CARÁTER CONTRIBUTIVO E SOLIDÁRIO DO SISTEMA

 

14. O direito à previdência social tem sede na Constituição de 1988, que institui os parâmetros básicos para o financiamento do sistema previdenciário e o dimensionamento dos benefícios. Para o presente caso, interessa analisar o Regime Geral de Previdência Social (RGPS), de filiação obrigatória para os trabalhadores da iniciativa privada. Embora não entre em pormenores, a Constituição institui um sistema baseado em duplo fundamento: contributivo e solidário.

15. A dimensão contributiva encontra-se prevista, de forma expressa, no art. 195, II, que determina a cobrança de contribuições previdenciárias dos trabalhadores e 9

 

demais segurados do sistema1. Como se sabe, o art. 195, I, prevê a cobrança também sobre os empregadores2, o que não deixa de ser uma forma de captação de recursos a partir do mercado de trabalho. A menção ao aspecto contributivo é reiterada no art. 201, que enuncia as coberturas mínimas do sistema e algumas normas básicas quanto ao seu financiamento, dentre as quais se destacam as seguintes:

 

1 CF/88, art. 195: “A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais: (...) II - do trabalhador e dos demais segurados da previdência social, não incidindo contribuição sobre aposentadoria e pensão concedidas pelo regime geral de previdência social de que trata o art. 201; (...)“. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998).

 

2 CF/88, art. 195, I: “do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre: a) a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício; b) a receita ou o faturamento; c) o lucro; (...)“. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998).

 

3 CF/88, art. 201: “A previdência social será organizada sob a forma de regime geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, e atenderá, nos termos da lei, a: (...)“. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998).

 

4 CF/88, art. 201, § 7°: “É assegurada aposentadoria no regime geral de previdência social, nos termos da lei, obedecidas as seguintes condições: I - trinta e cinco anos de contribuição, se homem, e trinta anos de contribuição, se mulher; II - sessenta e cinco anos de idade, se homem, e sessenta anos de idade, se mulher, reduzido em cinco anos o limite para os trabalhadores rurais de ambos os sexos e para os que exerçam suas atividades em regime de economia familiar, nestes incluídos o produtor rural, o garimpeiro e o pescador artesanal“. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998).

 

5 CF/88, art. 201, § 11: “Os ganhos habituais do empregado, a qualquer título, serão incorporados ao salário para efeito de contribuição previdenciária e conseqüente repercussão em benefícios, nos casos e na forma da lei“. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998).

(i) a diretriz geral é a busca por equilíbrio atuarial, de modo a que a previdência seja sustentável3;

(ii) em harmonia com essa premissa, a aposentadoria voluntária é condicionada a requisitos de idade e tempo de contribuição4, do que decorre tanto uma exigência de aportes mínimos quanto uma limitação do período provável de fruição dos benefícios;

(iii) os ganhos habituais do empregado devem ser computados para fins de cálculo das contribuições e dos benefícios5, o que revela a correspondência entre esses elementos e os rendimentos do segurado em atividade. Reforçando essa correlação, a EC nº 20/98 revogou a previsão de que seriam considerados apenas os últimos trinta e seis salários de contribuição, passando a levar em conta o histórico completo de cada segurado; 10

 

(iv) todos os salários de contribuição considerados para o cálculo do benefício devem ser atualizados6, confirmando que o montante das contribuições é um dos fatores determinantes para a definição das prestações a que o segurado fará jus;

 

6 CF/88, art. 201, § 3º: “Todos os salários de contribuição considerados para o cálculo de benefício serão devidamente atualizados, na forma da lei“. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998).

 

7 CF/88, art. 201, § 4°: “É assegurado o reajustamento dos benefícios para preservar-lhes, em caráter permanente, o valor real, conforme critérios definidos em lei“. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998).

 

8 CF/88, art. 195, § 4º: “A lei poderá instituir outras fontes destinadas a garantir a manutenção ou expansão da seguridade social, obedecido o disposto no art. 154, I“.

 

9 STF, ADI 3.105, DJ 18.02.2005, Rel. originária Min. Ellen Gracie, Rel. p/ o acórdão Min. Cezar Peluso.

(v) seguindo a mesma lógica, os próprios benefícios devem ser atualizados com o objetivo de que se preserve o seu valor real7.

 

16. A segunda dimensão da seguridade em geral, e do sistema previdenciário em particular, é marcada pelo princípio da solidariedade. Em termos abrangentes, essa dimensão pode ser reconduzida ao próprio dever estatal de proteger a dignidade humana, no que se inclui a criação de uma rede social mínima que impeça as pessoas de caírem em situações de indignidade. De forma mais específica, esse aspecto pode ser extraído da previsão de que a seguridade deve ser custeada por toda a sociedade, e não apenas pelos seus beneficiários imediatos. Isso ganha conteúdo concreto com a já mencionada possibilidade de emprego de recursos dos orçamentos públicos e, sobretudo, pela autorização constitucional para a criação de outras fontes de custeio, em paralelo com as contribuições sociais8. Como se sabe, a solidariedade foi um dos fundamentos utilizados pelo Supremo Tribunal Federal para assentar a validade da cobrança de contribuições previdenciárias dos servidores inativos9.

 

17. O sistema normativo descrito até aqui permite constatar que a Constituição não teve a pretensão de impor uma fórmula rígida para o cálculo das contribuições e dos benefícios, deixando uma ampla margem de conformação ao legislador ordinário. De forma particular, não se extrai da ordem constitucional a exigência de que haja correlação estrita entre os aportes dos segurados e as prestações que receberão futuramente. De modo compatível com esse cenário normativo, a legislação brasileira consagra, historicamente, a opção por um modelo de repartição simples, em que todas as contribuições atuais formam 11

 

um fundo geral para o custeio das prestações devidas no presente. Inexistem, assim, contas individuais vinculadas a cada segurado.

 

18. Reforçando ainda mais essa perspectiva, as regras do sistema podem dar origem a situações de aparente injustiça comutativa, nas duas direções. Com efeito, é possível que segurados contribuam durante toda a vida sem que isso reverta em benefício algum – e.g., nos casos de falecimento antes da aposentadoria, quando não haja pensionistas –, mas também é possível que os beneficiários recebam prestações, relevantes ou mesmo permanentes, a despeito de haverem contribuído de forma incipiente – e.g. em casos de aposentadorias precoces por invalidez. A ideia geral, portanto, é a de um seguro social, que fornece coberturas para situações adversas a partir de uma determinada fórmula de equilíbrio atuarial, que inclui algumas variáveis aleatórias.

 

19. Isso não significa, contudo, que o legislador disponha de liberdade absoluta para formatar o sistema segundo quaisquer critérios de conveniência. Em vez disso, há pelo menos dois limites principais à sua atuação. Em primeiro lugar, a falta de uma comutatividade absoluta ou rígida entre contribuições e benefícios não significa que a correspondência possa ser inteiramente desprezada. Ao contrário, a Constituição deixa claro que os salários de contribuição compõem a base de cálculo para a definição das prestações previdenciárias e que estes, assim como os próprios benefícios resultantes, devem ser atualizados a fim de que preservem a sua expressão econômica. Essas circunstâncias têm levado este Supremo Tribunal Federal a destacar a existência de uma relação necessária entre os aportes dos segurados e as prestações estatais10.

10 A título de exemplo, v. STF, MC na ADI 2010, DJ 12.04.2009, Rel. Min. Celso de Mello: “(...) O REGIME CONTRIBUTIVO É, POR ESSÊNCIA, UM REGIME DE CARÁTER EMINENTEMENTE RETRIBUTIVO. A QUESTÃO DO EQUILÍBRIO ATUARIAL (CF, ART. 195, § 5º). CONTRIBUIÇÃO DE SEGURIDADE SOCIAL SOBRE PENSÕES E PROVENTOS: AUSÊNCIA DE CAUSA SUFICIENTE. - Sem causa suficiente, não se justifica a instituição (ou a majoração) da contribuição de seguridade social, pois, no regime de previdência de caráter contributivo, deve haver, necessariamente, correlação entre custo e benefício. A existência de estrita vinculação causal entre contribuição e benefício põe em evidência a correção da fórmula segundo a qual não pode haver contribuição sem benefício, nem benefício sem contribuição. Doutrina. Precedente do STF. (...)“.

 

20. Em segundo lugar, e com maior relevância, o modelo concebido pelo legislador precisa ser compatível com o princípio da isonomia, repartindo de forma equitativa os ônus e bônus do sistema previdenciário. Essa é uma exigência expressa do 12

 

art. 201, § 1°, da Constituição, que impõe a adoção de critérios uniformes para a concessão de aposentadorias11. Daí a necessidade de que a legislação institua uma fórmula estável de correspondência entre contribuições e benefícios, aplicável a todos os segurados. Essa fórmula conterá, inevitavelmente, algumas variáveis indeterminadas a priori, desde a maior ou menor extensão do período de fruição dos benefícios até a existência ou não de pensionistas. É de se notar, porém, que essas incógnitas aplicam-se ao conjunto de segurados de forma impessoal, e não seletivamente.

11 CF/88, art. 201, § 1º: “É vedada a adoção de requisitos e critérios diferenciados para a concessão de aposentadoria aos beneficiários do regime geral de previdência social, ressalvados os casos de atividades exercidas sob condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física e quando se tratar de segurados portadores de deficiência, nos termos definidos em lei complementar“. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 47, de 2005).

12 Lei n° 8.213/91, art. 29, § 7°: “O fator previdenciário será calculado considerando-se a idade, a expectativa de sobrevida e o tempo de contribuição do segurado ao se aposentar, segundo a fórmula constante do Anexo desta Lei“. (Incluído pela Lei nº 9.876, de 26.11.99).

 

21. Feitas essas observações teóricas, já é possível analisar o tema específico da desaposentação.

IV. A DESAPOSENTAÇÃO À LUZ DO SISTEMA CONSTITUCIONAL

 

22. Como referido inicialmente, a chamada desaposentação consiste na renúncia à aposentadoria vigente, seguida da aquisição de novo vínculo em condições mais vantajosas. Na prática, a melhoria poderia decorrer de duas circunstâncias: (i) o envelhecimento do segurado desde a concessão do primeiro benefício, sendo essa uma das variáveis positivas no cálculo do fator previdenciário12; ou (ii) a realização de novas contribuições após a primeira aposentadoria, as quais o segurado pretende ver computadas para a obtenção de proventos em valor superior ao que vinha percebendo. A primeira hipótese não constitui objeto dos recursos extraordinários ora em exame e, de toda forma, parece envolver clara burla às regras da previdência. A análise ficará concentrada na segunda situação, na qual o segurado permaneceu em atividade laboral, efetuou novas contribuições e pretende vê-las consideradas. O ponto de partida há de ser a identificação dos dispositivos constitucionais e legais pertinentes à matéria. 13

 

IV.1. O sistema normativo em vigor

 

23. Nos termos do art. 195, II, da Constituição, os aposentados pelo Regime Geral de Previdência Social são imunes à cobrança da contribuição social incidente sobre os rendimentos do trabalho13. Isso faz com que o pagamento desses benefícios guarde relação apenas com o conjunto de contribuições vertidas durante a atividade. Nessa situação, o eventual dever de continuar a contribuir com o financiamento do sistema, fundado na solidariedade, estará sujeito às mesmas condições aplicáveis às pessoas que não sejam filiadas ao RGPS – isto é, a sociedade em geral. O cenário é diverso, portanto, daquele atualmente verificado em relação aos regimes de previdência dos servidores públicos, que podem ser obrigados a pagar contribuições previdenciárias sobre os seus proventos, na linha da autorização introduzida pela Emenda Constitucional n° 41/2003.

13 Embora o dispositivo já tenha sido transcrito, repete-se por facilidade, com destaque no trecho relevante: CF/88, art. 195: “A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais: (...) II - do trabalhador e dos demais segurados da previdência social, não incidindo contribuição sobre aposentadoria e pensão concedidas pelo regime geral de previdência social de que trata o art. 201; (...)“. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998).

14 STF, Re 437.640, DJ 02.03.2007, Rel. Min. Sepúlveda Pertence: “Contribuição previdenciária: aposentado que retorna à atividade: CF, art. 201, § 4º; L. 8.212/91, art. 12: aplicação à espécie, mutatis mutandis, da decisão plenária da ADIn 3.105, red.p/acórdão Peluso, DJ 18.2.05. A contribuição previdenciária do aposentado que retorna à atividade está amparada no princípio da universalidade do custeio da Previdência Social (CF, art. 195); o art. 201, § 4º, da Constituição Federal "remete à lei os casos em que a contribuição repercute nos benefícios".

 

24. Nada impede, contudo, que o aposentado pelo regime geral permaneça em atividade – inclusive sob o mesmo vínculo empregatício existente ao tempo da aposentadoria –, ou então que a ela retorne. Nesses casos, a legislação vigente contém dispositivo claro quanto ao dever de recolher a contribuição social sobre os rendimentos do trabalho ativo – o já transcrito art. 11, § 3º, da Lei nº 8.213/91 –, tendo a sua validade sido assentada por este Tribunal14. Ou seja, a lei segrega a relação jurídica anterior, que deu origem à aposentadoria, do novo período laboral, que dará respaldo à cobrança regular da contribuição social. Assim, no que concerne aos deveres, há igualdade entre as situações dos trabalhadores em geral e a dos aposentados que continuem a trabalhar.

 

25. Tal simetria não se reproduz, todavia, no que concerne aos direitos. Nos termos do art. 18, § 2º, da Lei nº 8.213/91, o aposentado que permaneça trabalhando e 14

 

contribuindo “não fará jus a prestação alguma da Previdência Social em decorrência do exercício dessa atividade, exceto ao salário-família e à reabilitação profissional, quando empregado”. Ficam excluídas, portanto, as prestações mais típicas e relevantes, que consistem na aposentadoria e na pensão. Ademais, na linha do que observou o denso parecer da Procuradoria-Geral da República, os dois benefícios concedidos são de fruição pouco provável por parte do universo de segurados em questão: o salário-família pressupõe que o segurado tenha dependentes menores de idade, o que não constitui situação corriqueira para indivíduos que já se aposentaram e retornaram à atividade laboral; tampouco parece provável o uso efetivo da reabilitação profissional, igualmente por razões etárias.

 

26. Em suma, é fato inequívoco que os aposentados em atividade contribuem em igualdade de condições e têm acesso a benefícios inexistentes ou extremamente limitados. E aqui é interessante observar que nem sempre foi assim. Em versões anteriores, a legislação previa, para esses segurados, o benefício adicional do pecúlio, que consistia justamente na devolução das contribuições efetuadas após a aposentadoria, corrigidas pelo índice da poupança. Esse pagamento era feito no momento em que o segurado se afastasse da atividade laboral, ingressando em definitivo na inatividade15. Isso praticamente anulava os efeitos financeiros das contribuições posteriores, restabelecendo a isonomia entre essas pessoas e os demais trabalhadores vinculados ao RGPS. Esse benefício foi extinto pela Lei nº 9.032/95, que deu nova redação ao já referido art. 18, § 2º, da Lei nº 8.213/91. Como se sabe, tal medida se insere, junto a outras, no esforço de reduzir o déficit específico da previdência.

15 Lei n° 8.213/91, art. 81: “Serão devidos pecúlios: (...) II – ao segurado aposentado por idade ou por tempo de serviço pelo Regime Geral de Previdência Social que voltar a exercer atividade abrangida pelo mesmo, quando dela se afastar. (...)”; “Art. 82: No caso dos incisos I e II, o pecúlio consistirá no pagamento único de valor correspondente à soma das importâncias relativas às contribuições do segurado, remuneradas de acordo com o índice de remuneração básica dos depósitos de poupança com data de aniversário no dia primeiro“. (Dispositivos revogados pela Lei nº 9.032, de 1995).

 

27. Vale o registro, aliás, de que o referido déficit foi o fundamento central para o arquivamento do Projeto de Lei nº 2.687/2007, de autoria do Deputado Federal Cléber Verde, que se destinava a reconhecer o direito à desaposentação, dispensando expressamente a necessidade de restituição dos proventos já recebidos. A proposta foi arquivada na Câmara dos Deputados, por decisão da Comissão de Finanças e Tributação, 15

 

com base no voto do relator então designado, Deputado Zeca Dirceu16. Em sua manifestação, S. Exa. destacou uma estimativa, elaborada pelo Ministério da Previdência Social, segundo a qual a admissibilidade de desaposentações tenderia a produzir, no longo prazo, um impacto de 69 bilhões de reais.

16 A tramitação legislativa registra, porém, a existência de recurso para suscitar a apreciação da matéria no Plenário da Câmara dos Deputados, pendente de apreciação pela Mesa Diretora. Para acesso ao andamento da proposta, ao texto do projeto e ao parecer apresentado na Comissão de Tributação e Finanças, bem como nas demais Comissões que analisaram o tema, v. http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=381947.

17 Lei n° 8.213/91, art. 29, § 7°: “O fator previdenciário será calculado considerando-se a idade, a expectativa de sobrevida e o tempo de contribuição do segurado ao se aposentar, segundo a fórmula constante do Anexo desta Lei“. (Incluído pela Lei nº 9.876, de 26.11.99)

 

28. Como referido, essa projeção leva em conta um cenário em que os valores já recebidos seriam conservados pelos segurados. Mesmo que essa variável fosse alterada, é evidente que admitir a desaposentação impactaria o financiamento do RGPS. Embora esse fator deva ser seriamente analisado, os direitos que efetivamente decorram do sistema não podem ser simplesmente postos de lado a partir do cálculo utilitário de que novos encargos devem ser evitados a qualquer custo, ainda que disso resulte prejuízo inconstitucional para um conjunto de beneficiários. O sistema previdenciário tem um de seus pilares na ideia de solidariedade, permitindo que a sociedade seja chamada a contribuir para o custeio de uma rede social, em bases gerais e equitativas. Disso não se extrai uma carta branca para legitimar o esvaziamento seletivo de direitos, imputando ônus excessivos ou desproporcionais a determinados segmentos. É à luz dessas considerações que se passa a analisar a figura da desaposentação.

IV.2. O equilíbrio entre as dimensões contributiva e solidária

 

29. Como se procurou demonstrar, a Constituição estabelece as diretrizes essenciais do Regime Geral de Previdência Social, fundado no caráter contributivo e no princípio da solidariedade. A partir dessas balizas, o Congresso Nacional dispõe de ampla liberdade de conformação para estruturar o regime de financiamento e as prestações estatais, tendo em vista a necessidade de promover o equilíbrio atuarial do sistema e garantir a sua integridade para as gerações atuais e futuras. Nessa linha, o legislador instituiu o chamado fator previdenciário – que desestimula aposentadorias precoces17 – e 16

 

criou limites para a revisão de benefícios, incluindo um prazo decadencial de dez anos, considerado válido em julgado recente, do qual fui relator18.

18 STF, RE 626.489, julgado em 16.10.2013, Rel. Min. Luís Roberto Barroso.

19 Embora o ponto não seja enfatizado nem mesmo pelo INSS, cabe registrar que o Decreto nº 3.048/99 (Regulamento do RGPS), em seu art. 181-B, estabelece que a aposentadoria seria “irreversível e irrenunciável”. Na linha do que sustentou a Procuradoria-Geral da República, é fora de dúvida a impropriedade de que se pretenda proibir a renúncia a um direito individual por ato infralegal, ainda mais quando se trate, como no caso, de projeções patrimoniais disponíveis. Apenas para facilitar a compreensão, veja-se o teor do dispositivo regulamentar: “Art. 181-B. As aposentadorias por idade, tempo de contribuição e especial concedidas pela previdência social, na forma deste Regulamento, são irreversíveis e irrenunciáveis. (...)”. (Incluído pelo Decreto nº 3.265, de 1999).

 

30. No caso em exame, a despeito da falta de uma vedação legal explícita19, o INSS sustenta que o art. 18, § 2º, da Lei nº 8.213/91, tornaria ilícita a renúncia à aposentadoria para fins de obtenção de novo vínculo, mais vantajoso, que leve em conta contribuições posteriores à concessão do benefício original. Já a cobrança de tais contribuições seria válida, justificando-se pelo componente de solidariedade inerente ao sistema. Com a devida vênia, essa construção radical não parece compatível com as normas constitucionais que tratam do tema.

 

31. Isso porque é a própria Constituição que estabelece uma relação direta entre a cobrança da contribuição prevista no art. 195, II, incidente sobre os rendimentos do trabalho, e o direito ao conjunto de prestações da previdência social – começando pela mais importante, que é o direito à aposentadoria. Nessas condições, não é razoável que o Poder Público pretenda fazer incidir plenamente a primeira parte do sistema – impondo aos aposentados que continuem a trabalhar o dever de recolher a contribuição social, em paridade com os demais trabalhadores –, mas paralise a segunda parte, esvaziando a consequência jurídica favorável associada a essa forma de tributação vinculada. A invocação genérica da ideia de solidariedade não é suficiente para autorizar esse tipo de recorte ou aplicação seletiva das normas constitucionais.

 

32. De forma sintomática, aliás, esse Supremo Tribunal Federal entendeu que a incidência da contribuição previdenciária sobre os proventos dos servidores inativos dependia de expressa previsão constitucional. Também aqui, a ideia de solidariedade não foi suficiente para se admitir que a legislação ordinária excepcionasse a simetria então 17

 

existente entre contribuições e prestações20. O caso em tela envolve um tipo de exceção ainda mais sensível. No caso dos servidores, o que se admitiu foi a possibilidade de que os inativos sejam chamados a ajudar no financiamento do caixa geral que suporta os seus benefícios e o sistema como um todo. No presente caso, o que a Administração pretende é tratar o trabalho após a aposentadoria exatamente da mesma forma que a atividade anterior, mas apenas em relação aos ônus.

20 Sobre a sequência normativa determinada pela edição de emendas, v. STF, AgRg no RE 424.055, DJ 05.05.2006, Rel. Min. Joaquim Barbosa: “(...) É inconstitucional a cobrança, após o advento da EC 20/1998, de contribuição previdenciária sobre os proventos de inativos e pensionistas, conforme jurisprudência firmada neste Supremo Tribunal Federal. Essa orientação aplica-se até o advento da Emenda Constitucional 41/2003, cujo art. 4º foi declarado constitucional por esta Corte, no julgamento das ADIs 3105 e 3128. (…).”

 

33. Vale dizer: a Constituição criou uma tributação sobre os rendimentos do trabalho e um conjunto de direitos daí decorrentes. O fato de a correlação entre esses vetores não se materializar em uma equação comutativa estrita não significa que o legislador infraconstitucional esteja autorizado a afastar a correspondência mínima. É isso o que ocorre quando se cria uma classe de pessoas que apenas contribuem, em igualdade de condições com os demais trabalhadores, mas não têm acesso a prestações minimamente semelhantes. Além de não estar prevista nas normas constitucionais que tratam especificamente do tema, esse tipo de disparidade seria de difícil compatibilização com a diretriz de valorização da função social do trabalho, prevista como um dos fundamentos da República e como princípio fundamental da ordem econômica.

 

34. Em suma: a possibilidade de renúncia a uma aposentadoria anterior para requerimento de uma nova é uma decorrência do sistema normativo em vigor, notadamente da combinação entre: (i) a imunidade dos proventos do RGPS em relação à contribuição social incidente sobre os rendimentos do trabalho; (ii) a cobrança da contribuição dos aposentados que retornam ao mercado de trabalho, sob o mesmo regime dos demais trabalhadores; e (iii) a inexistência de benefícios previdenciários específicos que justifiquem a incidência dessa tributação vinculada. Por tudo isso, se a legislação ordinária vedasse a desaposentação de forma expressa, a sua compatibilidade com o atual texto constitucional seria no mínimo duvidosa. 18

 

35. Como visto, contudo, o Superior Tribunal de Justiça interpretou o art. 18, § 2º, da Lei nº 8.213/91, como uma vedação à concessão de benefícios adicionais no âmbito da relação previdenciária existente, sem que disso se extraia um obstáculo à renúncia do vínculo original, seguida da celebração de um novo. Ainda que não seja evidente, essa é uma leitura possível do dispositivo em tela, sendo a única que o torna compatível com a Constituição. Foi essa, igualmente, a linha adotada pelo Ministro Marco Aurélio no RE 381.367, já mencionado. Para completar o raciocínio, é necessário tecer algumas considerações quanto aos proventos recebidos na constância da primeira aposentadoria. Esse é o objeto do próximo tópico.

IV.3. A necessidade de que sejam levados em conta os proventos já recebidos

 

36. Uma vez assentado que o sistema constitucional brasileiro atual não é compatível com uma vedação absoluta à desaposentação, resta analisar a necessidade de restituição dos valores já recebidos a título de proventos, com base no vínculo anterior. Quanto a esse tema, o Superior Tribunal de Justiça consolidou o entendimento de que a devolução seria indevida, uma vez que os valores foram percebidos de forma lícita na vigência de uma relação válida21. O relator na ocasião, Ministro Herman Benjamin, ressalvou seu entendimento pessoal no sentido de ser necessária a restituição a fim de que

21 STJ, REsp 1.334.488, Dje 14.05.2013, Rel. Min. Herman Benjamin: “RECURSO ESPECIAL. MATÉRIA REPETITIVA. ART. 543-C DO CPC E RESOLUÇÃO STJ 8⁄2008. RECURSO REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. DESAPOSENTAÇÃO E REAPOSENTAÇÃO. RENÚNCIA A APOSENTADORIA. CONCESSÃO DE NOVO E POSTERIOR JUBILAMENTO. DEVOLUÇÃO DE VALORES. DESNECESSIDADE. 1. Trata-se de Recursos Especiais com intuito, por parte do INSS, de declarar impossibilidade de renúncia a aposentadoria e, por parte do segurado, de dispensa de devolução de valores recebidos de aposentadoria a que pretende abdicar. 2. A pretensão do segurado consiste em renunciar à aposentadoria concedida para computar período contributivo utilizado, conjuntamente com os salários de contribuição da atividade em que permaneceu trabalhando, para a concessão de posterior e nova aposentação. 3. Os benefícios previdenciários são direitos patrimoniais disponíveis e, portanto, suscetíveis de desistência pelos seus titulares, prescindindo-se da devolução dos valores recebidos da aposentadoria


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